Hoje acordei em Lisboa. Como eu gostava de ter acordado há 44 anos em
Lisboa! Seria sublime viver aquela manhã de Sol, tal como a de hoje, do raiar
de um dia de uma madrugada libertadora!
Viver a primeira infância a ver os jovens que conhecia a fazerem festa
quando eram considerados aptos para a vida militar e, ao mesmo tempo, ouvir as
lamúrias e as rezas das mães que tinham os seus filhos a combater nas colónias
portuguesas de África causava em mim uma sensação dúbia, própria de um menino
que não sabia o que era a Liberdade, a Democracia, ou a ditadura.
Assistia às conversas entre mães temerosas de que os seus filhos não
regressassem do ultramar, e ao medo de outras, tal como a minha mãe, na
altura com dois filhos rapazes, de que estavam a criar os seus filhos
sempre com o coração nas mãos de um dia os poderem ver partir para uma guerra
que elas não sabiam para que era nem qual o sentido. Apenas sabiam que essa
guerra lhes "roubava" os filhos! que não sabiam se à partida seria a
última vez que os viam vivos!
Com a idade da altura, 12 anos, só ouvia falar do medo da PIDE. Mas eu não
tinha a mínima ideia do que isso era! Sabia apenas que havia uns delatores -
ouvia eu de algumas bocas: aquele é informador da PIDE! - Que para agradar aos
chefes mandantes não tinham pejo em acusar um vizinho ou um conhecido como um
delator do regime, mesmo sendo esse acusado um ignorante. Conheci um caso de um
ignorante, que nada sabia de política, que mal sabia assinar o nome, e a ler
era pior do que eu quando comecei a juntar as letras na leitura ao fim de dois
dias. Mas esse homem, que, diga-se, era um fala-barato, mas sem qualquer
maldade, um dia viu a casa da sua mãe invadida pela guarda para o levar. Acusado
de conspirar contra o regime. E por isso eu fiquei confuso.
Toda essa confusão que pairava na minha mente se esvaneceu e tudo se
clarificou na manhã soalheira de 25 de Abril de 1974. Fui para o Ciclo
Preparatório sem saber que, afinal, o tal regime que perseguia o meu vizinho
Luís já não existia. Fiz o caminho a pé. Chegado a Esposende, nada
transparecia de que algo tivesse mudado no país! Tudo era a normalidade dos
dias anteriores, dos meses e dos anos que eu já percorria aquelas artérias para
ir para a Escola.
Apenas quando já estávamos equipados para aula de Educação Física, e
já dávamos uns toques na bola no Campo Padre Sá Pereira, chegou o Professor de
Educação Física e informou-nos que não havia aulas pois tinha havido uma
Revolução em Lisboa e que nós deveríamos ir para casa e não andar na
rua. Sem mais explicações!
Vesti-me e segui o caminho inverso em direcção a casa. Lá chegado informei a
minha mãe de que não havia aulas, pois tinha havido uma Revolução em Lisboa.
Sentei-me em frente à televisão, talvez pelas 11 horas da manhã, e não mais
desgrudei da mesma até noite dentro e o sono me conseguir vencer. Naquele dia
ouvi falar da Liberdade, da Democracia, do fim da guerra colonial. Assisti ao
rebuliço das ruas e às informações das negociações no Quartel do Carmo, cercado
pelos carros de combate do regimento de Santarém, para a rendição do regime por
parte do Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, figura familiar das imagens
televisivas das "Conversas em Família".
Assim foi o meu primeiro contacto com o 25 de Abril! Desde então nunca mais
deixei de procurar saber mais e mais sobre a Revolução dos Cravos. Bebi cada
escrito e cada programa televisivo que nos falasse de Abril e daquela madrugada
libertadora. Para mim, Grândola Vila Morena e Zeca Afonso ainda hoje persistem.
Aliás, as cantigas do Zeca estão na minha playlist. Neste momento que escrevo,
ouço o Zeca nas colunas do computador.
Mas hoje, 44 anos depois, será que os ditames de Abril estão integrados na
nossa sociedade? Não sou tão radical como muitos. Abril foi Revolução! Houve
coisas boas. Houve coisas más. Houve erros. Houve excessos. Mas isso aconteceu
em todas as Revoluções que marcaram a Humanidade.
Foi graças a Abril que Portugal saiu da miséria do país mais pobre e menos
esclarecido da Europa. Foi graças a Abril que todos tiveram direito ao acesso à
Saúde e à Educação. Foi Abril que nos facultou o direito de escolher, em
eleições livres, quem queríamos a governar o nosso país. Foi com Abril que o
Poder Local ganhou independência e democraticamente os seus órgãos passaram a
ser eleitos pelo povo. Foi graças a Abril que deixei de ler nos boletins de
voto: "Sim ou não Marcelo Caetano", que os pais de família recebiam
pelo correio e no dia indicado iam colocar o boletim numa urna eleitoral que se
encontrava depositada na igreja da minha freguesia. A maravilha que é esta
mudança! Só quem a viveu a pode sentir!
Mas para completar os valores de Abril ainda muito há a fazer. Não obstante
a nossa adesão à Europa, onde nos encontramos abaixo da média, mas já
recuperamos extraordinariamente, temos de continuar a lutar pela
melhoria da condição de vida dos portugueses. A brilhante criação do
nosso Serviço Nacional de Saúde - onde nos podemos orgulhar de sermos dos
países do mundo com a mais baixa taxa de mortalidade infantil, o que não
acontecia antes do 25 de Abril -, o sistema de Educação pública e o sistema de
Segurança Social pública são conquistas de Abril que não podemos descurar e
não permitir que os interesses individuais do capital financeiro os pretenda
desmantelar. Muito há ainda a fazer nestes sectores. Mas são conquistas nossas.
São conquistas de Abril. São de todos e não de alguns!
Reconheço que vivemos num mundo global. Sei que hoje se vive enredado nos
ditames da economia. O défice e a dívida pública são a teia que nos enreda e
nos coarcta o acesso a mais igualdade. Mas esses ditames não podem ser
castradores da nossa sociedade. Não pode ser o princípio orientador que nos
impeça de tornar um país mais igual, mais justo, mais solidário. Um país onde a
pobreza seja uma vergonha e que todos tenham direito ao acesso a uma melhor
qualidade de vida. Possam trabalhar e receber um salário justo. Saberem que têm
garantias e direitos no seu trabalho, para além das obrigações. Não podem
sentir que são descartáveis a qualquer momento. Temos o direito de programar
uma vida com objectivos e com futuro. Estabilidade emocional pede-se a uma
sociedade livre e democrática. Cuidar das crianças mais desprotegidas e dos
idosos isolados e sem garantias de uma qualidade de vida mínima no fim da sua
vida pela parca reforma que os sustenta, é um desiderato civilizacional. Que os
filhos saibam que têm a obrigação de cuidar dos seus pais já velhos e cansados,
tal como eles os cuidaram quando eram bebés, crianças, adolescentes e jovens.
Nenhum filho deve dar como perdido o tempo a cuidar dos seus pais, pois os seus
pais cuidaram deles mais anos do que aqueles que os filhos podem cuidar dos
pais. Temos de lutar por uma sociedade de Direitos. Uma sociedade que reconheça
nos cidadãos portadores de deficiência pessoas com direitos, com direito à sua
dignidade como pessoa humana; com direito ao apoio público, privado e da
sociedade civil para que estes cidadãos não sejam escondidos na parte traseira
da casa.
Sei que muito há ainda a fazer para seguir Abril. A luta contra a corrupção
deverá ser um dos objectivos. Agora não podemos é pactuar com a delação. Não
devemos aceitar os espectáculos deploráveis que uma comunicação social em
conluio com a justiça (com a constante violação do segredo de justiça, um
princípio Constitucional de defesa de um acusado) para a imolação na praça
pública de alguém que seja acusado, ou mesmo ainda a ser investigado, fazendo,
com isso, um julgamento sumário em praça pública, onde a sociedade já interioriza
a culpabilidade do arguido. Esta é uma conquista de Abril que nos compete a
nós defender.
Hoje vivemos numa sociedade onde tudo é descartável. As redes sociais são um
meio de comunicação rápida, onde tudo se expõe sem regra. Acusa-se e
condena-se, expõe-se a vida privada com a maior facilidade. Muitas vezes é
sentença escrita na pedra o que se lê nas redes sociais. O julgamento é feito
apenas com a leitura das letras gordas dos jornais ou o rodapé no programa de
informação de um canal de televisão. Julga-se perder menos tempo a escrever no
teclado do computador e do telemóvel, e assim fica mais esclarecido e se mostra
mais erudito, do que dar algum do seu tempo a uma leitura aprofundada das
notícias ou de um livro.
Para mantermos Abril temos de sair da nossa área de conforto. Ir à luta.
Sair de casa e ouvir quem tem algo para nos dizer. Nem que saibamos que vamos
ouvir algo de que não concordamos. Mas a nossa vida preenche-se com estas
dicotomias. Temos de perceber que o melhor para nós não é ouvir só aqueles que
nos dizem sempre o que nós queremos ouvir. Mais importante é ouvirmos aqueles
que nos dizem o que nós não queremos ouvir. Ou que temos medo de ouvir, porque
muitas vezes somos obrigados a dar-lhes razão.
Não esqueçamos: Abril não acabou, é uma constante procura! Não nos devemos
acomodar!
Abril, Sempre!