quarta-feira, 12 de março de 2014

DO ALTO DO MONTE - CRÓNICA DOS NOSSOS DIAS



Do alto do monte tenho o privilégio de observar a paisagem, a cidade, o mar e os campos. É um regalo para os olhos contemplar o azul do mar e o verde dos campos; o mar revolto e os campos com a sua terra revirada, pronta a receber a próxima sementeira. Lá ao fundo, minusculamente, falta-me um binóculo para aconchegar à retina a visão aproximada, há um movimento parecido com pessoas. Mas são poucas! Vemos uma cidade sem gente. Os campos sem camponeses. A praia deserta, pois o dia e a época não convida a banhos de Sol. Deste lugar privilegiado, posso concluir que, lá ao fundo, a cidade não mexe, não regurgita de gente. Parece que a gente fugiu! Triste planície que se encontra tão vazia de pessoas, o único ser que dá alma às ruas, às lojas, ao comércio em si. Tudo isto, observado cá do alto do monte, torna-se triste, vazio, sem vontade de descer à cidade, à urbe, ao mundo. Sem gente, não há vida! Sem pessoas, não há movimento. Sem políticas sérias, não há desenvolvimento, não há cultura de passagem pela cidade.
Durante o dia encontram-se no interior dos edifícios a trabalhar. Terminada a hora da jorna, é vê-los cada um para seu lado, em direcção às suas terras, às suas casas. Afinal o que fica agora que terminou o horário de expediente das repartições, dos bancos, do comércio? Nada! Ficam uns poucos que vão “vagabundeando” em busca de alguém com quem falar. Até os bancos do largo ficaram vazios. Os seus ocupantes, reformados por natureza, também acabaram o seu dia de trabalho: contar os carros que passam na rua, falar de futebol e, talvez, da crise, isto para além dos passeios a Fátima e das festas populares. Alguns aproveitam a solidão para irem contando umas contas do tercinho. Se a crise continuar, é preparar a oferta de rosários, para ver se a coisa melhora com a ajuda divina. Já que a ajuda terrena só desgraça, só traz miséria.
Tirando o mês de Agosto, a cidade só se apinha de gente quando há festa, quando há “pão e circo”. Conforme relatou, no Século I, Júlio Juvenal, a propósito do modelo de sustentação político criado por Roma para a manutenção da ordem social do Império. Na prática esse modelo correspondia à garantia da existência de comida e diversão para o povo, com o objectivo de apaziguar eventuais movimentos de insatisfação social contra os governantes e as suas políticas. A leitura de Juvenal corresponde a uma das primeiras e mais profundas críticas que se conhecem acerca do funcionamento do sistema político, nomeadamente das estratégias que este vai encontrando para se perpetuar, suportado pela massa amorfa que constitui o povo. E por cá esta estratégia vai funcionando. Pois chama-se o povo para assistir a descerrar placas de arranjos de ruas e passeios, de cantinhos que pouco uso vai ter. O povo vai em hordas! Corre para ver, mas principalmente para ser visto, pois importa que o poder saiba que ele esteve lá. Aplaudiu e apoiou. Ouve os discursos panegíricos de circunstâncias. O povo solta o aplauso repenicado, não vá os capatazes entenderem como sinal de fraqueza o baixo silvo dos aplausos.
Porém, e contrariamente ao que possa pensar-se, a culpa deste estado de coisas não está no povo. A culpa, se existe, tem sido da responsabilidade das sucessivas elites políticas que, pelas mais variadas razões e um pouco por todo o lado, se têm abstido de implementar políticas vocacionadas à preparação de cidadãos mais interessados, preocupados, com espírito objectivamente crítico e participativos das grandes decisões relativas à sociedade de que fazem parte.
Estamos em crer que a elevação destes índices de esclarecimento junto do povo teria como resultado directo o incremento da qualidade dos políticos, dos seus projectos e das políticas que colocariam em prática. Doutra forma, continuaremos a correr o sério risco de a crise ser, aos olhos de grande parte dos cidadãos, algo que serve apenas para alimentar discursos e debates políticos, mas sem qualquer correspondência com a realidade da vida de cada um de nós.
No entanto, também seria oportuno que a oposição olhasse doutra forma para o seu comportamento ao pretender ser alternativa ao poder instalado. O discurso politicamente correcto é sinal de subserviência, evidência de que pretende que o status quo se mantenha, pois a pobreza de espírito leva a que possa colher algumas migalhas que caem da mesa farta do poder. E também eles serem parte integrante da procissão que na tribuna da arena distribui o “pão e circo” a um povo faminto de ideias, de cultura, de espírito crítico. Gente que procura aparecer na “fotografia”, pois dessa forma pode ser que um “empreguito” lhe surja, afinal é do clube, coloca o chapéu, acena a bandeira e acende o isqueiro.
A política é construída por ideias contrárias, pois só assim há alternativa, há discussão, há pontos de vista diferentes. Por norma os Partidos políticos têm na sua génese uma ideologia que os diferencia. Mas hoje em dia a maioria dos que se envolvem nos partidos políticos não o fazem por ideologia. Hoje envolvem-se na política, principalmente a partir de baixo, com o pragmatismo próprio de quem apenas está interessado em concretizar as suas ambições pessoais. Por vezes estas ambições desmesuradas tolhem o raciocínio, pelo que muitos não olham a meios para atingir os fins. Esquecem o princípio da solidariedade. Mandam às malvas o interesse colectivo. O pragmático pensamento individual que sobreleva tudo e todos e atropela aqueles que nesta vida andam de boa-fé. Muitas vezes, com vontade de se tornar agradável ao poder, fazem-se afirmações panegíricas sobre os seus adversários políticos que levam ao ridículo quem as proclamou. Afirmações que serão aproveitadas no primeiro momento, que servirão de arma de arremesso contra aqueles que as proferiram.
É tempo da oposição começar a terçar armas com verdade. A iniciar o seu trajecto de verdadeira alternativa. De procurar diferenciar-se na forma de fazer política. Mostrar aos olhos do povo que as suas ideias, o seu comportamento, são credíveis e que podem acreditar neles. Quando o debate público não existe, quando a comunicação social não procura o contraditório, quando se impinge o pensamento único, a oposição tem de se transformar, tem de procurar formas alternativas de passar a mensagem. Essa é só estando no meio das pessoas. Só mostrando comportamentos de verdadeira oposição. Diferenciando o seu discurso. Sem se tornar ridículo e panegírico, pode-se elogiar o poder por algo que possa ter feito, mas logo de seguida informar que faria de forma diferente e talvez melhor.
Para que as pessoas possam sentir confiança na oposição, ainda por cima quando os comportamentos dos intervenientes partidários até se confundem, só se pode chegar ao poder com muito trabalho, com muita dedicação, com muita credibilidade e sentir o pulsar das pessoas.
Ouvir as pessoas fora da época da campanha eleitoral é primordial. Estar lá no momento em que as pessoas têm necessidade de reivindicar. Promover cultura. Incentivar a participação em debates, conferências e colóquios. Se o poder utiliza o pão e circo, a oposição não pode seguir o mesmo rumo, tem de mostrar às pessoas que há alternativas. Que o medo tem de acabar. A Democracia é feita também com a liberdade de pensamento, de participação e de entrega à causa pública.
Quando se vive numa letargia cultural, com o pensamento único arreigado no pensamento das pessoas, compete à oposição, se algum dia quiser ser poder, abanar as consciências. Esse é o caminho.
Agora nunca será o caminho certo, a estrada segura, quando se debitam discursos panegíricos em homenagem aos que se encontram no poder. É que o povo pode não ver tudo, mas isto percebe. E se ouve e lê elogios a quem governa, então a opção é a mais fácil: manter tudo como está!

quarta-feira, 5 de março de 2014

O PAÍS ESTÁ MELHOR PARA QUEM?



Por vezes ouvimos palavras tão frias como a ponta de uma espada que perfura e trespassa o coração das pessoas. Quando essas palavras são conjugadas numa frase, tornam-se no estilete que nos esventra e nos rouba as entranhas. Tal qual as palavras proferidas por responsáveis do governo e deputados do PSD, quando afirmaram que «o país está melhor, mas as pessoas estão pior». Quando se fazem afirmações com esta frieza, temos de sentir que estamos perante gente que não tem um mínimo de sensibilidade social. Falta o sentimento humanitário que deve existir em quem governa e naqueles que os apoiam.
Um país é composto por pessoas, que são os seus habitantes. Portanto, um país só pode estar bem, estar melhor, se as pessoas que lá vivem estiverem bem, estiverem melhor. Destrinçar as pessoas do país é demonstrativo de que a insensibilidade social toca a perigosíssima linha ténue que separa uma democracia de uma autocracia.   
É incompreensível que não se consiga entender que um país é apenas um espaço de terreno delimitado por linhas que indicam o território, o espaço físico. Portanto, sendo o País um espaço de terreno, o que faz esse país são as pessoas. E só em mentes desequilibradas é que se pode desprezar as pessoas. Só gente imbuída de um espírito autocrático, a roçar a tirania, é que poderá lançar a tónica do desprezo pela vida das pessoas.
Um país só estará bem quando as pessoas também estiverem bem! A não ser que esse país apenas se preocupe em que pessoas como os Amorins, os Soares dos Santos e os Belmiros estejam bem, tal qual o anúncio da revista “Forbes”, que diz que estes três indivíduos aumentaram a sua fortuna, em 2013, em 2 mil milhões de euros, conforme anuncia a capa do jornal “Diário de Notícias”, de terça-feira, 4 de Março deste ano. Em contrapartida ao aumento da fortuna destes senhores, a grande maioria das pessoas deste país vive cada vez pior. Os pais, já reformados, vêem entrar pelas portas adentro os filhos e os netos, que passam a ter de abrigar debaixo de telha e sustentar, pois o desemprego abateu-se sobre os seus filhos, passando a parca reforma que recebem a ser o único sustento de uma família que aumentou. São muitos os exemplos que a política austeritária de cortes cegos lançou na miséria, na pobreza.  
No mesmo jornal, na mesma capa, há uma chamada, no lado direito das fotografias dos três mais ricos de Portugal: «Falta de agulhas atrasa quatro meses exame de cancro». De facto, que interessa às pessoas o país estar melhor se faltam agulhas para se fazer um exame de cancro. Que adianta ao cidadão comum que o país esteja melhor, mas tem de esperar dois anos para uma consulta para realizar um exame para despiste de um cancro, e quando a consulta chega já é tarde, pois o cancro lançou-se inexoravelmente a contaminar o corpo do doente. O que importa o país estar melhor se as pessoas andam de hospital em hospital, e nesta viagem de porta em porta acabar por morrer. O que vale o país estar melhor se um cidadão com um traumatismo crânio-encefálico vê as portas dos hospitais a não se abrirem para o receber e ter de, entre a vida e a morte, fazer uma viagem de mais de 400 quilómetros numa ambulância. Ou será que com os cortes orçamentais para a destruição do Serviço Nacional de Saúde os hospitais não terão desmantelado camas dos cuidados intensivos? Tendo em conta os altos custos deste serviço. Alguém já procurou saber o motivo pelo qual a maioria dos hospitais centrais está com os serviços de cuidados intensivos esgotados? Afinal que país é este que está melhor?
Também o Eurostat diz que Portugal é o país europeu com mais rendimento concentrado nos mais ricos. É para estes que o país está melhor? É para eles que o governo promove o enorme aumento de impostos sobre uma classe média cada vez mais esmifrada e destruída. Diz o Eurostat que «em 2011, os 10 por cento mais ricos reuniam 27,3% do rendimento global das famílias portuguesas num ano». Na prática, o que se comprova é que um décimo das famílias portuguesas concentra 27,3% do rendimento global amealhado por todas durante um ano. E não tenhamos dúvidas de que essa percentagem tem vindo a aumentar e era, em 2011, últimos dados disponíveis, a mais elevada da União Europeia, ficando 3,4 pontos percentuais acima da média comunitária. Certamente, hoje os valores estão mais desequilibrados, sempre em favor dos mais ricos, como anuncia a “Forbes”.
Surge uma luz ténue, um lusco-fusco, e logo é anunciado ao som das trinetas de que estamos perante um «milagre da economia portuguesa». Tal anúncio deve fazer vacilar até os mais crentes nos milagres imputados aos seus Santos de devoção, pois tal comparação milagreira tem o condão de desvalorizar os milagres escritos e defendidos pela Santa Madre Igreja.
São estas palavras frias e desprovidas de respeito para com as pessoas, que ferem, que mortificam, a alma da gente, que mata um povo que é tragado pela dimensão da onda do fisco na cobrança dos rendimentos sobre o trabalho, e das políticas de cortes cegos na Educação Pública, na Saúde Pública e nos Apoios Sociais.