Falar de tradição é
transmitir ancestralidade; contudo, em política tradição não pode ser o dogma
orientador.
1 – No último mês a palavra que mais tem sido utilizada no espectro
político português é: “tradição”.
Segundo o dicionário Priberam da
Língua Portuguesa, a palavra tradição corresponde: 1. Via pela qual os factos
ou os dogmas são transmitidos de geração em geração sem mais prova autêntica da
sua veracidade que essa transmissão; 2. O facto ou o dogma assim transmitido;
3. Transmissão de uma notícia, boato, rumor; 4. Símbolo, memória, recordação,
uso, hábito; 5. Entrega, acto pelo qual se entrega alguma coisa a alguém; 6.
Transmissão, transferência de bens ou de direitos.
Perante a descrição
interpretativa do que corresponde o vocábulo “tradição”, não entendo o motivo
pelo qual se arregimentaram as turbas ululantes que nos têm impingido uma
caterva de lições moralistas sobre a tradição.
Muitos são os que clamam que a
tradição era assim e deveria continuar. Todavia, ao que eles chamam “tradição”,
eu apelido de “arranjinhos” partidários entre os intitulados partidos do “arco
da governação”. A alternância no poder e a dança de cadeiras nas nomeações
políticas e indicação de gestores partidários para as empresas públicas, era o
que agora chamam de “tradição”.
Foi alicerçada nesta
interpretação da “tradição” que o Portugal político viveu nos últimos 35 anos.
E qual foi o resultado final desta “tradição”: os mesmos a governar; os mesmos
a nomear; os sempre interesseiros em comer da gamela do Orçamento do Estado a
apoiar os partidos do “arco da governação”; sempre os mesmos, seja um ou seja
outro o partido no governo, a beneficiar das mordomias estatais, a ter acesso
directo aos negócios, a ter ao seu lado um recheado número de deputados a votar
em prol dos seus interesses; a promiscuidade entre a política e os negócios; a
mistura entre os escritórios das grandes sociedades de advogados e os partidos
políticos em prol de interesses de terceiros que não os do povo português. Esta
tem sido a tal “tradição” que tantos hoje apregoam e se manifestam ruidosamente
contra quem ousou pôr em causa esta “tradição” e teve a coragem de quebrar
estes laços “tradicionais” e procurar outros entendimentos no sentido de
implementar novos rumos e novos objectivos que visem essencialmente a melhoria
das condições de vida dos portugueses mais desprotegidos e que possam fazer de
Portugal um país mais reivindicativo e menos de cócoras perante os poderes
discricionários de uma Europa à deriva e sem soluções para a coesão social de
uma União Europeia sem rumo e sem identidade.
2 – Por isso não estranho a escandecência que a turba ululante demonstra
contra António Costa, o Secretário-geral do Partido Socialista, que, após o
acto eleitoral de 4 de Outubro, procurou fazer prevalecer a Democracia.
É óbvio que desde há 35 anos que
em Portugal se confundiu Democracia com “tradição”. Se procurou impor ao
Parlamento uma função que não era a génese da sua criação. Ao Parlamento,
eleito por voto directo, secreto e universal dos eleitores portugueses, compete
conceber e apoiar um governo que tem sempre de ser formado no seu seio.
Lançar o epiteto de “golpe de
Estado”, “ganhar na secretaria”, “quebrar a tradição”, “não respeitar a
Democracia”, mais não passa do que um acto de histeria completa de gente que se
viu ultrapassada por quem entendeu ser seu direito e obrigação procurar, dentro
do Parlamento, em completo respeito pela Constituição da República Portuguesa,
formar um governo suportado na maioria parlamentar que os portugueses formaram
com as eleições de 4 de Outubro. É a isto que a desesperada direita, sem
maioria no Parlamento, chama de quebra da “tradição”. Mas a tal “tradição” são
os homens que a sustentam. Nada de objectivo traz para a comunidade, a não ser
manter algumas normas por conveniência.
A direita que hoje está instalada
em Portugal está arregimentada à volta da “tradição”, contudo, não teve
qualquer sobressalto cívico de defesa da tradição dos feriados que cortaram
enquanto governo. Para isso não conta a “tradição”?
3 – Outro acto de desespero dos apoiantes da direita, reporta-se à
retórica pura e simples da acusação mais banal e sem sentido de que estamos
perante um “terramoto” que traz à superfície o que de mais macabro pode existir
na sociedade, apodando a irresponsabilidade, o desrespeito e a mentira como a
arte suprema dos políticos, tudo isto a servir de impropério contra António
Costa.
Há, até, quem proclame que o grau
máximo do 25 de Abril se gorou no passado dia 5 de Outubro, ou seja, que a
Liberdade pereceu perante a ignomínia de António Costa ao procurar
entendimentos à esquerda para formar um governo com apoio da maioria
parlamentar e que vise alterar o rumo concedido pelo governo da PàF.
No entanto, tudo isto não passa
de falácias para levarem ao engano o incauto “portuga” que está mais preocupado
com a sua sobrevivência no dia-a-dia do que conhecer o regime político que
funciona no nosso país.
Tendo Portugal em funcionamento
um regime semipresidencial, é suposto que, conforme a Constituição da República
Portuguesa, tão vilipendiada pela direita política e aprovada em 1976 com o
voto contra do CDS, seja o Parlamento o ventre do nascimento dos governos, em
conformidade com os resultados eleitorais e a distribuição dos deputados
eleitos pelos seus quadrantes políticos.
Dito isto, importa vincar que a
assinatura de um acordo pelos partidos da esquerda, mesmo que nenhum deles
tenha sido o mais votado, mas respaldados no facto de em conjunto terem obtido
o maior número de votos e de mandatos, portanto obtendo uma maioria absoluta
parlamentar, e assim possam formar um governo, não é nenhuma heresia política,
não é nenhum ataque à Democracia, não é nenhum “golpe da Estado”, não é nenhum
“assalto ao poder” ou “ganhar na secretaria”, é, apenas e só, a Democracia a
funcionar no seu pleno direito e, ainda mais, ir de encontro e respeitar o que
o inefável Cavaco Silva, Presidente da República, sempre proclamou de que era
imperioso haver um governo de estabilidade, com acordos partidários que pudessem
obter uma maioria absoluta no apoio parlamentar. Foi isto que Cavaco, o
defensor mor da PàF, em detrimento de ser o defensor de todos os portugueses,
sempre afirmou.
Todavia, confrontado com esta
possibilidade de acordo à esquerda para a formação de um governo estável e com
maioria absoluta no Parlamento, Cavaco Silva, o “líder do PSD”, vem comunicar
ao país que não aceita um governo que tenha o apoio do PCP e do BE. Esta
posição de Cavaco é que é um atentado contra a Democracia, é um autêntico
“golpe de Estado” perpetrado pelo suposto Presidente da República. São as
palavras e os actos de Cavaco Silva na defesa da direita que provoca a mentira
e a falsidade.
A decisão da maioria de esquerda
em procurar um entendimento de governo para a legislatura é democrático,
defende a liberdade e segue os princípios de uma República verdadeira e
democrática, defensora da ética republicana e do povo que representa.
4 – É assaz curioso o que tem vindo a público na comunicação social
sobre a elaboração do programa de governo da PàF e que, segundo pude ler no DN:
«O primeiro-ministro incumbiu ministros e secretários [de Estado] de
consultarem os programas de PS, CDU e Bloco de Esquerda, de forma a proporem
medidas que, em cada sector, vão ao encontro de medidas dos partidos de
esquerda sem beliscar as metas da coligação».
Perante esta notícia, posso
aferir que a PàF está a quebrar a tradição, e em vez de governar com o seu programa
eleitoral, que não tinha e não apresentou aos portugueses durante a campanha
eleitoral, vai governar com a junção das propostas eleitorais do PS, do BE e da
CDU. Então, presumo, que para a PàF é possível, «sem beliscar as metas» de
Bruxelas, governar para as pessoas em vez de o fazer para os mercados, a
governação dos últimos quatro anos foi um ajuste de contas com o 25 de Abril.
Nota: O autor escreve segundo o
antigo AO
*Artigo publicado no Jornal
Notícias de Esposende n.º 41/2015 – 7/Novembro