segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A TRADIÇÃO*

Falar de tradição é transmitir ancestralidade; contudo, em política tradição não pode ser o dogma orientador.
1 – No último mês a palavra que mais tem sido utilizada no espectro político português é: “tradição”.
Segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a palavra tradição corresponde: 1. Via pela qual os factos ou os dogmas são transmitidos de geração em geração sem mais prova autêntica da sua veracidade que essa transmissão; 2. O facto ou o dogma assim transmitido; 3. Transmissão de uma notícia, boato, rumor; 4. Símbolo, memória, recordação, uso, hábito; 5. Entrega, acto pelo qual se entrega alguma coisa a alguém; 6. Transmissão, transferência de bens ou de direitos.
Perante a descrição interpretativa do que corresponde o vocábulo “tradição”, não entendo o motivo pelo qual se arregimentaram as turbas ululantes que nos têm impingido uma caterva de lições moralistas sobre a tradição.
Muitos são os que clamam que a tradição era assim e deveria continuar. Todavia, ao que eles chamam “tradição”, eu apelido de “arranjinhos” partidários entre os intitulados partidos do “arco da governação”. A alternância no poder e a dança de cadeiras nas nomeações políticas e indicação de gestores partidários para as empresas públicas, era o que agora chamam de “tradição”.
Foi alicerçada nesta interpretação da “tradição” que o Portugal político viveu nos últimos 35 anos. E qual foi o resultado final desta “tradição”: os mesmos a governar; os mesmos a nomear; os sempre interesseiros em comer da gamela do Orçamento do Estado a apoiar os partidos do “arco da governação”; sempre os mesmos, seja um ou seja outro o partido no governo, a beneficiar das mordomias estatais, a ter acesso directo aos negócios, a ter ao seu lado um recheado número de deputados a votar em prol dos seus interesses; a promiscuidade entre a política e os negócios; a mistura entre os escritórios das grandes sociedades de advogados e os partidos políticos em prol de interesses de terceiros que não os do povo português. Esta tem sido a tal “tradição” que tantos hoje apregoam e se manifestam ruidosamente contra quem ousou pôr em causa esta “tradição” e teve a coragem de quebrar estes laços “tradicionais” e procurar outros entendimentos no sentido de implementar novos rumos e novos objectivos que visem essencialmente a melhoria das condições de vida dos portugueses mais desprotegidos e que possam fazer de Portugal um país mais reivindicativo e menos de cócoras perante os poderes discricionários de uma Europa à deriva e sem soluções para a coesão social de uma União Europeia sem rumo e sem identidade.
2 – Por isso não estranho a escandecência que a turba ululante demonstra contra António Costa, o Secretário-geral do Partido Socialista, que, após o acto eleitoral de 4 de Outubro, procurou fazer prevalecer a Democracia.
É óbvio que desde há 35 anos que em Portugal se confundiu Democracia com “tradição”. Se procurou impor ao Parlamento uma função que não era a génese da sua criação. Ao Parlamento, eleito por voto directo, secreto e universal dos eleitores portugueses, compete conceber e apoiar um governo que tem sempre de ser formado no seu seio.
Lançar o epiteto de “golpe de Estado”, “ganhar na secretaria”, “quebrar a tradição”, “não respeitar a Democracia”, mais não passa do que um acto de histeria completa de gente que se viu ultrapassada por quem entendeu ser seu direito e obrigação procurar, dentro do Parlamento, em completo respeito pela Constituição da República Portuguesa, formar um governo suportado na maioria parlamentar que os portugueses formaram com as eleições de 4 de Outubro. É a isto que a desesperada direita, sem maioria no Parlamento, chama de quebra da “tradição”. Mas a tal “tradição” são os homens que a sustentam. Nada de objectivo traz para a comunidade, a não ser manter algumas normas por conveniência.
A direita que hoje está instalada em Portugal está arregimentada à volta da “tradição”, contudo, não teve qualquer sobressalto cívico de defesa da tradição dos feriados que cortaram enquanto governo. Para isso não conta a “tradição”?
3 – Outro acto de desespero dos apoiantes da direita, reporta-se à retórica pura e simples da acusação mais banal e sem sentido de que estamos perante um “terramoto” que traz à superfície o que de mais macabro pode existir na sociedade, apodando a irresponsabilidade, o desrespeito e a mentira como a arte suprema dos políticos, tudo isto a servir de impropério contra António Costa.
Há, até, quem proclame que o grau máximo do 25 de Abril se gorou no passado dia 5 de Outubro, ou seja, que a Liberdade pereceu perante a ignomínia de António Costa ao procurar entendimentos à esquerda para formar um governo com apoio da maioria parlamentar e que vise alterar o rumo concedido pelo governo da PàF.
No entanto, tudo isto não passa de falácias para levarem ao engano o incauto “portuga” que está mais preocupado com a sua sobrevivência no dia-a-dia do que conhecer o regime político que funciona no nosso país.
Tendo Portugal em funcionamento um regime semipresidencial, é suposto que, conforme a Constituição da República Portuguesa, tão vilipendiada pela direita política e aprovada em 1976 com o voto contra do CDS, seja o Parlamento o ventre do nascimento dos governos, em conformidade com os resultados eleitorais e a distribuição dos deputados eleitos pelos seus quadrantes políticos.
Dito isto, importa vincar que a assinatura de um acordo pelos partidos da esquerda, mesmo que nenhum deles tenha sido o mais votado, mas respaldados no facto de em conjunto terem obtido o maior número de votos e de mandatos, portanto obtendo uma maioria absoluta parlamentar, e assim possam formar um governo, não é nenhuma heresia política, não é nenhum ataque à Democracia, não é nenhum “golpe da Estado”, não é nenhum “assalto ao poder” ou “ganhar na secretaria”, é, apenas e só, a Democracia a funcionar no seu pleno direito e, ainda mais, ir de encontro e respeitar o que o inefável Cavaco Silva, Presidente da República, sempre proclamou de que era imperioso haver um governo de estabilidade, com acordos partidários que pudessem obter uma maioria absoluta no apoio parlamentar. Foi isto que Cavaco, o defensor mor da PàF, em detrimento de ser o defensor de todos os portugueses, sempre afirmou.
Todavia, confrontado com esta possibilidade de acordo à esquerda para a formação de um governo estável e com maioria absoluta no Parlamento, Cavaco Silva, o “líder do PSD”, vem comunicar ao país que não aceita um governo que tenha o apoio do PCP e do BE. Esta posição de Cavaco é que é um atentado contra a Democracia, é um autêntico “golpe de Estado” perpetrado pelo suposto Presidente da República. São as palavras e os actos de Cavaco Silva na defesa da direita que provoca a mentira e a falsidade.
A decisão da maioria de esquerda em procurar um entendimento de governo para a legislatura é democrático, defende a liberdade e segue os princípios de uma República verdadeira e democrática, defensora da ética republicana e do povo que representa.
4 – É assaz curioso o que tem vindo a público na comunicação social sobre a elaboração do programa de governo da PàF e que, segundo pude ler no DN: «O primeiro-ministro incumbiu ministros e secretários [de Estado] de consultarem os programas de PS, CDU e Bloco de Esquerda, de forma a proporem medidas que, em cada sector, vão ao encontro de medidas dos partidos de esquerda sem beliscar as metas da coligação».
Perante esta notícia, posso aferir que a PàF está a quebrar a tradição, e em vez de governar com o seu programa eleitoral, que não tinha e não apresentou aos portugueses durante a campanha eleitoral, vai governar com a junção das propostas eleitorais do PS, do BE e da CDU. Então, presumo, que para a PàF é possível, «sem beliscar as metas» de Bruxelas, governar para as pessoas em vez de o fazer para os mercados, a governação dos últimos quatro anos foi um ajuste de contas com o 25 de Abril.
Nota: O autor escreve segundo o antigo AO

*Artigo publicado no Jornal Notícias de Esposende n.º 41/2015 – 7/Novembro

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

QUE DEUS NOS PROTEJA PARA NÃO TERMOS POR MUITO TEMPO ESTE MINISTRO

Não fosse a desgraça que no fim-de semana se abateu sobre as zonas algarvias de Albufeira e Quarteira, o dia de hoje, dedicado ao dia de Todos-os-Santos, seria cómico, tendo em conta a verve do novel ministro da Administração Interna.
Investido há dias nas novas funções ministeriais, eis que o Ministro se dirige ao Algarve para, no local, se inteirar da gravidade da situação e observar a destruição causada pela intempérie.
Depois de atestar a idoneidade de Ricardo Salgado, num douto parecer jurídico que serviu de base a Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal, para não destituir o Espírito Santo de líder do BES, Calvão da Silva sentenciou com o seu punho supremo de que uma choruda maquia de 14 milhões de euros não era mais do que o reconhecimento da amizade do construtor civil com o banqueiro, o professor de Direito da Universidade de Coimbra recebeu o reconhecimento público de Passos Coelho ao nomeá-lo para ministro da Administração Interna.
Investido das suas novéis funções, o ministro lá se apresentou em Albufeira para In loco observar a grandeza dos danos, as dores dos proprietários atingidos e a calamidade dos prejuízos. Ao observar tão dantesco cenário, o novo ministro, do governo nado morto, logo puxou da sua grandiloquência para lavrar tão pomposa e dignificante sentença: “a natureza é demoníaca”. Aqui tem razão S. Exa. o Senhor Ministro, então não é que o demónio da natureza nem o Domingo respeitou, pior ainda, não venerou o antigo feriado de 1 de Novembro, o dia dos fiéis defuntos. Pede-se ao digníssimo Professor que lavre de imediato um douto parecer condenando a natureza pela sua falta de respeito pelo dia do Senhor, o domingo, dia de descanso…
Para além dos prejuízos materiais provocados pelas inundações, também uma pessoa perdeu a vida devido à forte corrente de água que fez com que o veículo conduzido por um homem com 79 anos de idade tivesse sido arrastado para um riacho, causando a morte do senhor.
Falando da morte deste cidadão português, o novo ministro frisou, com eloquente sabedoria e com ar condoído pela dor, procurando sufragar a dor dos familiares da vítima, “Ele entregou-se a Deus e Deus, com certeza, que lhe reservou um lugar adequado”. Nem Salazar nem o Cardeal Cerejeira teria a sensatez de proferir tão brilhante e profunda frase… Haja já uma condecoração da presidência da República. O Homem merece…
Mas não ficou por aqui, o novo ministro já veio dar uns ralhetes nos proprietários por serem uns gastadores, não terem um pé-de-meia para fazerem seguros. Quem não tem seguros aqui no Algarve, isto «é uma lição de vida», frisou o ministro.
“Cada um tem um pequeno pé-de-meia. Em vez de o gastar a mais aqui ou além, paga um prémio de seguro. Não imagina a quantidade de pessoas que falaram que já accionaram o seguro. Isto é uma lição de vida para todos nós.”
Questionado sobre a situação dos comerciantes que não têm seguro, Calvão da Silva respondeu. “Quem não tem seguro, aprende em primeiro lugar que é bom reservar sempre um bocadinho para no futuro ter seguro. Em segundo, é bom esperar que o levantamento seja feito pela autarquia, que é a autoridade adequada, e mostrar que os requisitos de calamidade se verificam”.

Instado a pronunciar-se sobre o futuro que espera e as dificuldades que vão encontrar aqueles que não têm seguro, Calvão da Silva insistiu. "Eu sei que há muitas carteiras magras. Mas está a falar com uma pessoa que nasceu em Trás-os-Montes, que sabe o que é ser pobre e vir do pobre e tentar ser alguém. A mobilidade social funciona para todos. E todos temos de ter a nossa responsabilidade no sentido e dizer: 'eu tenho um negócio, vou fazer o meu seguro para que se o infortúnio me bater à porta tenha valido a pena pagar o prémio."
Eis senhores, mais um daqueles, tal qual o de Boliqueime, que se arvora no “pobre coitado” provinciano que subiu na vida. Com tal ralhete, com o ar paternalista com que foi ao Algarve chicotear os proprietários, os comerciantes e as pessoas por não terem seguros, por não cuidarem de poupar para pagar os seguros, o professor de Direito de Coimbra é um fiel zelador dos cuidados paternalistas com que Salazar e Cavaco Silva demonstraram ter pelos portugueses.

Não me admira o tal parecer dos 14 milhões, pois tal oferta seria o sinal supremo de que a poupança do construtor civil serviu para ter o banqueiro como um seguro…