A falta de “educação” política dá origem a que haja
muita manipulação por parte de quem ocupa o espaço mediático.
1 - Desde as eleições do passado
dia 4 de Outubro, o país tem sido enxameado por uma caterva de gente com
capacidades paranormais, até então desconhecidas, tal o lote que diz conhecer o
pensamento das pessoas no acto de votar. Se isto não fosse grave, até se
tornava cómico.
A direita, que ganhou as eleições
sem maioria absoluta, ao ver fugir-lhe o chão por debaixo dos pés, entrou numa
histeria tal que até mete dó, graças ao comportamento de políticos, jornalistas
e comentadores da direita que andam num transe desmedido para manter uma tese
que só na cabeça deles existe.
Todavia, o acto de votar é uma acção
isolada. Uma atitude individual. Uma declaração de consciência daquilo que o
eleitor quer para si. Em suma, a colocação de uma cruz na escolha do partido ou
coligação, no isolamento da cabine de voto, é a expressão de uma vontade
própria, um rito solitário e fechado em si mesmo, sem qualquer anúncio da sua
intenção, para a formação de um Parlamento que possa depois defender os seus
interesses individuais e comuns. Por isso o voto é secreto!
Portanto, é indecoroso que alguém
chame a si o direito de interpretar a vontade individual do eleitor. Como
dizerem que quem votou no PS não quer uma maioria de esquerda. Ou quem votou no
PS quer um acordo com a direita. E mesmo terem o topete de interpretar que os
eleitores que votaram no PS se soubessem que o seu Secretário-geral pretendia
fazer um acordo com a esquerda não votaria no PS.
É abusivo e antidemocrático
extrapolar o que quer que seja sobre a real intenção do voto do eleitor. É que
se assim for, entramos numa quadratura do círculo, pois também se pode interpretar
que o eleitor que votou no PS não quer acordos com a direita. Ou quem votou no
BE não quer o governo da PàF e quer um acordo com o PS. Tudo aquilo que seja
extrapolação de intenções individuais é contrário à democracia e ao respeito do
direito individual.
Contudo, os resultados eleitorais
são sempre a soma da parte no todo. É sempre a vontade individual a juntar-se à
vontade colectiva. Mas isso não é sinónimo de que possam ser tiradas conclusões
conforme os interesses individuais e colectivos de quem as elabora. Que é o que
toda a direita tem andado a fazer. Entende a direita que o PS, porque não
ganhou as eleições, não tem de procurar entendimentos à esquerda para formar um
governo de maioria no parlamento, pois assume, sem vergonha e sem pudor, que os
eleitores do PS quando votaram no PS não sabiam dessa intenção. E que tal
intenção é uma ignomínia, pois uma parte dos que foram votar disse que queria o
governo da PàF, afirma a direita. Para a direita já conta que 38,4% dos que
votaram queiram um governo da PàF. Mas já não aceitam que 50,7% dos que foram
votar não querem o governo da PàF. Por isso, entendem que se deve impor a
teoria da minoria, e a maioria deve aceitar e não objectar. A Democracia
Parlamentar não é isto!
E assim começa a tentativa de
manipular a opinião pública, tentando adulterar intencionalmente a
Constituição.
2 – Como é óbvio, ninguém com um
mínimo de seriedade pode pôr em causa o sistema constitucional que nos rege. Só
a falta de educação para a cidadania, no que diz respeito à aprendizagem básica
da nossa Constituição e do sistema eleitoral que nos rege, que deveria ser
obrigatório para todos na escola, faz com que haja gente disposta a distorcer a
informação conforme a sua conveniência.
Quando somos chamados a votar em
eleições Legislativas o que vamos fazer é eleger os deputados que vão fazer
parte do parlamento – por isso dizemos que os deputados são os nossos
representantes e que fomos nós que os elegemos. Não vamos eleger um
Primeiro-ministro nem um governo. Elegemos o Parlamento! E por isso se chamam
eleições Legislativas. Elege-se o Parlamento que vai legislar. Se fosse para
eleger o governo, seria, então, mais lógico chamar “eleições executivas”, pois
pertence ao governo o poder executivo.
A Constituição, no art.º 187, n.º
1, diz que o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos
os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os
resultados eleitorais. E é assim que se cumpre os procedimentos para a indigitação
do Primeiro-ministro.
Assim sendo, é do Parlamento que
emana o governo e é o Parlamento que aprova ou veta o programa do governo.
Tendo em conta os dizeres
constitucionais, nada impede que um partido, mesmo não tendo ganho as eleições,
procure uma coligação pós-eleitoral no sentido de formar um governo com apoio
maioritário no Parlamento. Isso não pode ser posto em causa! E só a má-fé de
muita gente é que pode considerar que quem procure no seio do Parlamento
constituir uma maioria para governar está a cometer um “golpe de estado” ou um
“assalto ao poder”. Se a Constituição quisesse privilegiar as coligações
pré-eleitorais em detrimento de coligações pós-eleitorais teria estabelecido, a
exemplo do que acontece em alguns países, como a Grécia, um sistema de bónus de
deputados ao partido mais votado. Como a nossa Constituição não tem isso,
temos, obrigatoriamente, de trabalhar com aquilo que é permitido: criar
condições de governabilidade constituindo maiorias parlamentares que sejam
consistentes, sérias, responsáveis e que assumam um compromisso para os 4 anos
da legislatura. Se assim não for, não vale a pena perder tempo e credibilidade.
Gritar que se deve governar com o
apoio de 38,4% dos eleitores que foram votar contra a vontade de 50,7% não é
sério nem intelectualmente honesto. Também não é honesto dizer que quem detém o
apoio de 50,7% dos eleitores que foram às urnas representados no Parlamento,
mesmo que em coligação pós-eleitoral, ao pretender formar um governo que está a
promover um “golpe de Estado”. Dizer isto é subverter aquilo que é a própria
ideia de Democracia representativa.
3 – Perdida a razão e desmontada
a narrativa do “golpe de Estado”, um novo conto surgiu nas hostes da direita
(mas a minha crítica seria igual se fosse por parte da esquerda), que é o de
que António Costa nunca tinha dito antes das eleições que faria uma coligação à
esquerda e por isso está a defraudar os eleitores que votaram no PS.
Sendo que cada voto individual é
sempre exercido com múltiplas razões e a ele imanente, e perante esta
disenteria que afecta a direita, resta-me apenas desmontar as falácias, as
mentiras, que a direita vomita neste momento sobre a decisão de António Costa e
do PS em procurar acordos à esquerda que possam viabilizar um governo suportado
numa maioria parlamentar.
Contrariamente ao que anuncia a
direita, António Costa disse no discurso de encerramento do congresso, no dia
30 de Novembro de 2014, que se realizou em Lisboa, que recusava o termo “arco
da governação”, justificando: «Recusamos o conceito do arco da governação como
delimitando quem são os partidos representados na Assembleia da República que
têm acesso e têm a legitimidade a partilhar responsabilidades governativas. Em
democracia quem decide quem representa o povo é o povo e ninguém se pode
substituir ao povo e excluir parte dos seus representantes das suas plenas
responsabilidades. E portanto que fique claro: nós não excluiremos os partidos
à nossa esquerda da responsabilidade que também têm de não serem só partidos de
protesto mas de serem também partidos de solução para os problemas nacionais».
Em Agosto passado, numa
entrevista ao jornal “SOL”, António Costa afirmou: «Da minha parte, nunca pus
nenhum obstáculo a um acordo com o PCP. Na Câmara de Lisboa tentei fazê-lo, os
comunistas recusaram sempre. Rejeito em absoluto a ideia de arco da governação,
a ideia de que o poder apenas pertence ao PS, PSD e CDS». E repetiu esta mesma
ideia várias vezes na campanha.
Por isso, tentarem ocultar estes
factos não é sério nem é intelectualmente honesto.
No momento em que escrevo este
artigo não sei qual o resultado final de tudo isto. Conquanto, assumo que
ficarei desiludido caso não seja conseguido um acordo à esquerda para a
formação de um governo com maioria parlamentar.
NOTA: O autor escreve segundo antigo AO.
*Crónica publicada no jornal
Notícias de Esposende de 23 de Outubro 2015.