Estamos a comemorar mais um
Natal! Outrora, esta festividade era vivida com muita expectativa pelas
crianças, principalmente pela espera do Menino Jesus.
Hoje, o apelo já não é às prendas
do Menino Jesus. É o pedido ao pai Natal, aquele que vem do Norte da Europa num
trenó puxado pelas renas. O conceito do Menino Jesus não é comparável com
aquele que hoje é concedido ao pai Natal. O primeiro era mais genuíno, enquanto
o pai Natal, figura criada pela multinacional Coca Cola, não obstante apresentar
um ar de ancião com as suas barbas brancas e o fato vermelho – hoje já há de
todas as cores, para satisfação de todos –, é uma mera construção do marketing
e do apelo ao consumo.
Portanto, temos um Natal antes do
aparecimento do pai Natal e outro depois do surgimento dessa figura, que é
apresentada às crianças como o exemplo da bondade. Alteraram-se conceitos.
Mudou o Natal!
Da festa do nascimento do Menino
Deus Salvador, daquele que vinha de noite, em segredo, pela chaminé colocar as
prendinhas no sapatinho das crianças, passou-se para a festa do consumo, a
alegria do pai Natal ao chegar com o saco das prendas.
Portanto, a época natalícia, que
deveria ser de concórdia, de paz e fraternidade, transformou-se num exemplo
flagrante de despesismo, de consumo. Independentemente de toda a alteração
conceptual respeitante a esta festividade, não poderemos deixar de olvidar que
há gente que sobrevive graças ao negócio natalício. Mas se uns equilibram as
suas parcas contas; há outros que ganham muito dinheiro graças à exploração
comercial do Natal.
Nesta época não faltam apelos à
solidariedade. Não falham as mensagens de Boas Festas e desejos de muita
felicidade e amor. Enche-se a boca a falar de solidariedade! É a altura em que
as empresas se lembram dos seus trabalhadores com o jantar de Natal. Mas
durante o ano quantas vezes terão penalizado os seus trabalhadores por terem de
ficar em casa a cuidar de um filho doente?
A música nas ruas e os jogos de
luzes criam um ambiente propício, mas é um ambiente enganador. Sentimos um
ambiente que nos anestesia e nos cria a ilusão de que somos mesmo assim. O que
esta época de solidariedade nos traz, nos faz o chamamento, nos envolve num
ambiente de ternura e benevolência, é apenas uma sensação, nada mais que isso,
de que a sociedade é solidária. Mas é um sentimento enganador!
Basta desmontar o espírito
natalício e todos regressam à rotina própria de uma sociedade ávida de inveja,
numa procura insistente do seu individualismo, no esquecimento total do outro,
mesmo daquele familiar que num catre do hospital ou num casebre insalubre vai
definhando até à chegada da hora da partida do mundo terreno, e que só é
lembrado no Natal. Mesmo até do pai ou da mãe que espera um telefonema dos filhos
para quebrar a solidão, mas ele não chega durante o ano, só no Natal, porque é
“chique”.
A solidariedade não pode ser um
acto de ligeireza para com o próximo, apenas uma forma de quem a pratica
mostrar ao mundo a sua veia solidária. Não é aceitável que se fale em ser
solidário apenas nesta altura do ano, só porque são muitas as atenções que são
dadas aos actos de solidariedade praticados por muitos daqueles que apenas
pretendem surgir aos olhos da sociedade como gente amiga dos pobres, dos mais
necessitados.
A solidariedade, ao contrário do
que faz a maioria das pessoas, não se anuncia, pratica-se! Essa é a verdadeira
essência do ser solidário. Ser solidário não é chamar os jornais e tirar a
fotografia. Ser solidário é praticar o bem ao outro sem que mais ninguém saiba.
Ser solidário é uma obrigação diária e não uma prática epocal.
Se olharmos bem para tudo o que
envolve o “negócio” da solidariedade, entendemos perfeitamente que são
solidários apenas aqueles anónimos que oferecem um pouco do pouco que têm para
ajudar aqueles que menos têm.
Ouvimos as empresas falar em
responsabilidade social e solidariedade. Surgem notícias das empresas que
colaboraram com actos solidários. Mas será que essas empresas são mesmo
solidárias? Como tratam os seus trabalhadores? Tratam-nos com solidariedade?
Compreendem as necessidades e as dificuldades na vida que vivem os seus
trabalhadores? Ou apenas poderemos recriar um quadro de hipocrisia?
Nos actos de recolha de alimentos
nas grandes superfícies para serem entregues aos que mais precisam, assistimos
a uma hipocrisia travestida em solidariedade por parte da empresa proprietária
de superfície comercial. Senão vejamos: são os voluntários que distribuem os
sacos e os recolhem quando o cidadão à saída os entrega. Que faz a superfície
comercial? Empresta o espaço à saída da porta. O cidadão faz as compras para
doar. Ao fazê-lo está a pagar IVA que reverte a favor do Estado e a aumentar os
lucros da empresa, pois o cidadão solidário paga os artigos ao preço normal,
com a respectiva margem de lucro a reverter a favor da superfície comercial.
Podemos dizer que essa entidade está a praticar solidariedade? Julgo que não!
Outra situação hipócrita que se
aproveita da solidariedade para facturar. As empresas que anunciam as ofertas
de bens em favor dos mais necessitados incluem esses bens nos custos das
empresas, abatendo essas verbas aos seus lucros e, dessa forma, não pagam os
impostos devidos. Portanto, não dão nada a ninguém, apenas mudam o destinatário
do pagamento.
Por fim, temos as campanhas dos
canais televisivos a pedirem os donativos pelo telefone. Acontece, porém, que
os custos das chamadas telefónicas são pagas pelo cidadão, revertendo em lucro
para as operadoras telefónicas e, por vezes, para os próprios canais
televisivos, assim como o Estado cobra o valor do IVA.
Aqui fica exemplificado que mesmo
em actos de solidariedade há muito quem lucre com os gestos dos cidadãos, por
norma aqueles que já pouco têm, mas que não se coíbem de ajudar aqueles que
menos têm.
É este um retrato do mundo em que
vivemos. E o Natal traz à colação muitas vezes este tipo de hipocrisias de
muitos que não se cansam de anunciar os seus gestos solidários.